A proposta do desencarceramento voltou ao debate recentemente após a declaração do Ministro dos Direitos Humanos de Lula, Silvio Almeida, que, em uma entrevista à BBC News Brasil, defendeu a necessidade da descriminalização das drogas com fins no “desencarceramento”.
Antes disso, o tema já vinha sendo tratado durante as eleições porque estava presente no plano original de governo do PT que foi removido devido à polêmica que gerou, o que foi avaliado como potencial risco de prejudicar a campanha. O plano, porém, foi registrado por jornais e sites na época, como a reportagem do Brado Jornal, de outubro de 2022.
“As Resoluções do PT tinha como “programa de governo” criar um tribunal de exceção para processar Bolsonaro, desmilitarizar as polícias, descriminalizar as drogas e promover desencarceramento de milhares de presos provisórios”, disse o site.
Para o promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, Leonardo Giardin, coautor do livro Bandidolatria E Democídio : Ensaios Sobre Garantismo Penal E A Criminalidade No Brasil, a agenda pelo desencarceramento faz parte da gama de esforços para perverter o sistema.
“Estamos diante de um processo que, há décadas, tem buscado constante e discretamente revolucionar a cultura do sistema de justiça criminal, pervertendo a sua finalidade”, diz o promotor em conversa com Estudos Nacionais.
“Essa agenda começou com algumas ‘exigências’ básicas, dentre as quais a suspensão imediata de qualquer investimento em vagas nos sistemas penitenciário (casas prisionais) e socioeducativo (instituições de internação de menores infratores). ‘Nem 1 real a mais!’, diziam. Na sequência, passaram a denunciar a superlotação carcerária (gerada parte pela cultura de impunidade então já estabelecida, parte pela própria ausência de investimento em vagas prisionais, fomentada por eles mesmos)”, conta Giardin.
“Finalmente, diante do caos penitenciário que patrocinavam, começaram a exigir que, dada a superlotação, ninguém mais fosse preso enquanto não fossem criadas novas vagas nas prisões. Aquelas vagas cuja criação eles mesmos condenavam”.
Giardin conta que o processo que teve início já nos anos 70, no Brasil, passou a alterar a cultura do sistema de justiça através da jurisprudência e pressão política. O resultado prático, segundo ele, foi a construção da Agenda Nacional pelo Desencarceramento, de 2013, considerada a “cereja do bolo” do que o promotor considera o desmonte da justiça penal brasileira.
Para o jurista criminalista, Eduardo Cabette, apesar de idas e vindas, como a Lei de Crimes Hediondos, de 1990, o desencarceramento cresceu principalmente a partir de 1995, com a lei dos Juizados Especiais, Civis e criminais (lei 9.099/95), que trouxe uma série de elementos descarcerizadores e, segundo o jurista, até mesmo despenalizadores.
“Depois, você vai ver um movimento no Judiciário na tendência de amenizar os efeitos, por exemplo, da Lei de Crimes Hediondos”, explica o jurista.
Cabette ressalta que a tendência aparece mais nos últimos graus do Judiciário: STJ e STF. São essas instâncias que, ao considerar inconstitucionalidade de aplicação de instrumentos como as Leis de Crimes Hediondos, observa-se uma série de outras decisões baseadas nessas decisões, principalmente pelo STF. Os agentes desencarcerizadores são essencialmente os dois órgãos máximos do Judiciário, com exceção dos tribunais do Rio Grande do Sul, que promovem decisões mais ousadas e avançam o tema antes das instâncias superiores. No entanto, segundo Cabette, em geral, os juízes de primeira e segunda instâncias não são tão influenciados por essa pauta.
“Por exemplo, admissão de pena alternativa em tráfico de drogas. Veja se pode! As penas alternativas já existem há muito tempo, mas foram mais desenvolvidas na década de 90”, explica o jurista, que é também delegado aposentado.
“Se você vê a produção acadêmica a respeito de pena, prisão, vai num crescente e, jurisprudencialmente, com o STF e STJ como protagonista, até chegar ao ponto de interpretações como ‘estado de coisas inconstitucional’, sobre o sistema carcerário”, explica.
Os focos de militância do desencarceramento estão no meio acadêmico, de maneira mais forte e intransponível, e nas cortes superiores, que atuam por meio da jurisprudência. Cabette dá exemplos de literatura jurídica acadêmica que utiliza as decisões de primeiro e segundo grau, menos desencarceradoras, para embasar a teoria de um estado policial que precisa ser revisto. Essa literatura é consumida pelas cortes superiores e abastece suas decisões. Já no Legislativo, a pauta avança pelos grupos de pressão.
Seletividade do desencarceramento
Para o advogado Bernardo Krobel, essa pauta é complexa e a contaminação ideológica é evidente e expõe contradições. Ele argumenta que o desencarceramento precisaria levar em conta cada caso e não causalidades abstratas, como tem sido comum entre militantes da causa.
“Tudo parte de uma principiologia de como você vai encarar o autor dos fatos, que é o criminoso. No Brasil, temos a mania de encarar ele sob a ótica dos direitos humanos, colocando ele como vítima da sociedade. Já outros países entendem que essas pessoas precisam estar afastadas do convívio social pelo bem dos demais”, explica, considerando que mesmo crimes considerados menores vão levando males à sociedade à medida que não são retirados dela.
“Você pega, por exemplo, um furto qualificado, que é um furto com agressão. E, digamos, sob o efeito de drogas. Então você tem um apelo todo em volta, de porque que isso aconteceu, ‘ele só quis usar uma droguinha’, e uma discussão do tipo ‘se ele não tivesse usado a droga… se a sociedade não o tivesse oprimindo… porque ele não conseguiu um emprego…’. Então ele seria preso injustamente por esse motivo”.
Krobel compara essa compreensão ao tratamento dado, por exemplo, a crimes ambientais, que muitas vezes podem ser cometidos sem qualquer intencionalidade e acidentalmente, mas sobre os quais não se dá o mesmo tratamento.
“Crimes ambientais, hoje, por exemplo, pescar em uma lagoa que é proibida. A pessoa vai presa. A pena por você matar um animal é equiparada a matar um ser humano. Inclusive o apelo social é muito maior do que matar um ser humano”, ressaltou o advogado e lembrou que matar um animal pode ter sido até um acidente. No entanto, a pauta do desencarceramento é seletiva e possui um viés pesado contra novos crimes, como supostas ofensas contra minorias, muitas vezes interpretados ideologicamente e contra o qual não há defesa possível na opinião pública ou no direito.
A pauta se mostra cada vez mais seletiva ideologicamente. No Reino Unido, recentemente aprovou-se a possibilidade de prisão para quem estiver parado rezando diante de uma clínica de aborto, o que passa a ser considerado um constrangimento ofensivo. Na mesma medida em que a pauta do desencarceramento parece querer atenuar os crimes tradicionais, previstos no ordenamento penal, aperta o cerco e cria um verdadeiro estado policial contra novas formas de entendimento de condutas que passam a ser vistas como criminosas.
História e financiamento da pauta
A pauta do desencarceramento se originou na década de 1960, nos Estados Unidos, como uma alegada resposta ao aumento da população carcerária e das políticas prisionais, acuadas de promoverem um “encarceramento em massa”. Desde então, o movimento vem se espalhando pelo mundo, com organizações financiadoras da pauta e redes de ativistas que defendem a redução, ou até a eliminação, do uso da prisão como forma de punição e a adoção de políticas alternativas de justiça criminal.
Já desde os primórdios, entidades filantrópicas injetavam dinheiro na pauta de maneira a promover a sua expansão pelo mundo.
Entre as primeiras entidades a apoiar o movimento pelo desencarceramento estão a Fundação Ford e a Fundação Rockefeller, que financiaram pesquisas e iniciativas de organizações como a American Civil Liberties Union (ACLU) e a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), que buscavam denunciar as violações de direitos humanos nos presídios e propor alternativas ao modelo de encarceramento em massa.
Ao longo das décadas seguintes, outras organizações passaram a apoiar a luta pelo desencarceramento, incluindo a Open Society Foundations, do bilionário George Soros, a MacArthur Foundation, a Ford Foundation e a Fundação Avina, entre outras. Essas organizações forneceram recursos financeiros e técnicos para a implementação de programas de justiça restaurativa, resolução de conflitos e alternativas ao encarceramento em diversos países ao redor do mundo.
Para Giardin, a pauta entrou no Brasil na década seguinte, nos anos 70, fruto de uma convergência de forças sociais e políticas que ganhou força no Judiciário nos anos 80.
“Sobretudo pelo surgimento do chamado ‘direito alternativo’, extremamente radical, e que foi sendo paulatinamente substituído por sua versão ‘científica’ a partir da última década de 90, denominada garantismo penal”, conta Giardin.
O movimento ganhou força na década de 1990, com a criação de organizações como o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e a Pastoral Carcerária, ainda hoje o principal “guarda-chuva” de entidades atuantes no Brasil. Essas organizações buscavam denunciar as violações de direitos humanos nos presídios brasileiros e propor alternativas ao modelo de encarceramento em massa, mas o seu ponto de partida sempre foi ideológico e de crítica total ao sistema de punições. Para setores da esquerda, de onde se origina a pauta, toda ação vinda do Estado Burguês é, essencialmente, contrária ao proletariado, expresso tanto pela classe trabalhadora, negros, pobres, mulheres e minorias que depois passaram a receber financiamento para a exploração de conflitos sociais e crítica negativa da sociedade capitalista.
Nos anos 2000, o movimento pelo desencarceramento ganhou ainda mais destaque no Brasil, com a criação de diversas redes e coletivos. Um dos principais marcos do movimento no país foi a realização da I Conferência Nacional de Segurança Pública, em 2009, que colocou o tema do desencarceramento na pauta das discussões sobre segurança pública.
Desde então, o movimento pelo desencarceramento tem se fortalecido no Brasil, com a criação de novas organizações e a realização de campanhas e mobilizações em defesa de uma “justiça criminal mais justa e menos punitiva”. Entre as principais demandas do movimento estão a redução das penas para crimes não violentos, a descriminalização de drogas e a adoção de políticas de “justiça restaurativa” e de resolução de conflitos sem a necessidade de prisão.
Além das primeiras primeiras entidades a financiarem a luta pelo desencarceramento, como a Pastoral Carcerária e o Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), a pauta ganhou força com a entrada de entidades como a Open Society Foundations, a Ford Foundations, a Fundação Avina e a Fundação Heinrich Böll, entre outras. Essas organizações forneceram recursos financeiros e técnicos para a realização de pesquisas, campanhas, mobilizações e projetos que incluem a prática do “advocacy”, espécie de lobby de causas sociais.
Em um trabalho publicado em 2020, na revista de direito da Universidade Federal de Viçosa, intitulado O mito do encarceramento excessivo: uma visão realista sobre o sistema carcerário brasileiro, os pesquisadores expuseram uma série de manipulações utilizadas por ativistas para inflar números de presos, omitindo dados para sugerir que haveria, no Brasil, uma superpopulação carcerária, gerando assim as condições propícias à narrativa do desencarceramento.
A prática do “advocacy” é a principal atividade de grupos financiados internacionalmente, uma forma de alcançarem a mídia e paralelamente setores políticos, influenciando a opinião pública na posição de “sociedade civil organizada”.
A estrutura horizontal do movimento pelo desencarceramento no Brasil tem início com a Pastoral Carcerária, entidade ligada à Igreja Católica que é apoiada por diversas fundações progressistas que funcionam como verdadeiros guarda-chuvas de financiamento para entidades menores.
Entre os grupos que apoiam a Pastoral, há o Fundo Brasil de Direitos Humanos, um imenso guarda-chuvas de fornecimento de dinheiro para entidades menores espalhadas pelo país. O fundo recebe dinheiro considerável da Open Society Foundations, OAK Foundations, Ford, entre outras que também financiam pautas progressistas como a legalização das drogas, do aborto e a inserção da Ideologia de Gênero na Educação.
Em seu site, o Fundo declara ter feito cerca de R$ 38,5 milhões em doações a organizações, 161 visitas a projetos apoiados em suas localidades, nas 5 regiões do país, 30 chamadas gerais e temáticas, 46 eventos de sensibilização do público (seminários temáticos, shows musicais e outros). Além disso, executaram 922 projetos apoiados em todo o país, 29 campanhas, 25 encontros de formação para integrantes de projetos apoiados e 40 produtos de comunicação, entre publicações, vídeos e uma plataforma de conteúdos.
Toda essa intensa atividade é custeada por grandes fundações internacionais para atuarem no Brasil para modificar leis e o próprio sistema punitivo.
Um dos criadores do Fundo Brasil foi o bispo Dom Pedro Casaldáliga (1928-2020). Adepto da Teologia da Libertação, é também defensor da reforma agrária e foi o fundador da Comissão Pastoral da Terra e do Conselho Indigenista Missionário.
Em sua página, o Fundo Brasil se descreve como grande canalizador de recursos para ONGs e movimentos que dizem representar a “sociedade civil”.
“A missão do Fundo Brasil é promover o respeito aos direitos humanos no Brasil, construindo mecanismos inovadores e sustentáveis que canalizem recursos para fortalecer organizações da sociedade civil e para desenvolver a filantropia de justiça social”.
Quanto ao financiamento e manutenção do próprio Fundo, porém, a entidade representa muito mais o interesse de seus financiadores. Em seu demonstrativo financeiro de 2021, demonstra ter recebido quase R$ 20 milhões apenas de fontes internacionais. Em termos de comparação, em receitas nacionais, o organismo recebeu R$ 979.260, em 2020, e R$ 639.007, em 2021. Se considerarmos de onde vem a maior parte do seu dinheiro, portanto, a entidade representa mais a “sociedade civil” dos bilionários do que qualquer outra coisa.
Apenas para citar a mais conhecida entidade filantrópica, a Open Society, que também é financiadora da pauta da descriminalização das drogas em todo o mundo, o Fundo Social recebeu R$ 1.236.863 entre 2016 e 2021, como mostra o gráfico abaixo.
O “Advocacy”
As entidades que financiam a pauta do desencarceramento são, em geral, as mesmas que apoiam a descriminalização das drogas. Esse apoio é feito por meio do sustento de ONGs e movimentos, coletivos, que através da prática do advocacy, espécie de lobby de causas feito junto ao legislativo e o judiciário, fomentam as causas de interesse de seus financiadores.
No meio legislativo, o advocacy é feito através de reuniões e fornecimento de informações, dados estatísticos e levantamentos produzidos por essas entidades, argumentação e números para serem usados em discursos parlamentares. No Judiciário, eles oferecem interpretações, fundamentos teóricos e dados sobre a sua atuação junto a casuística, jurisprudência e inovações jurídicas. O advocacy é uma das principais funções sempre elencadas em seus estatutos e lista de princípios, sendo a sua representatividade como “sociedade civil” essencial para que esse ativismo ganhe moldes de popularidade e legitimidade política.
Entre as entidades que apoiam as duas causas estão:
- Open Society Foundations
- Ford Foundation
- Fundação Heinrich Böll
- Fundação Rosa Luxemburgo
- Fundação Friedrich Ebert
- Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)
- Instituto Igarapé
- Instituto Sou da Paz
- Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM)
- Conectas Direitos Humanos
- Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
- Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD)
- Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)
- Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME)
- Associação Brasileira de Redução de Danos (ABORDA)
- Coletivo DAR (Desentorpecendo A Razão)