Em um relatório sobre a influência de Aleksandr Dugin, a Rand Corporation chega a dizer que as ideias do ideólogo “são complexas demais para ser adotadas por um partido”. É inacreditável que usem esta conclusão para sustentar que ele não teria influência alguma na política russa. Isso porque qualquer um que estude o assunto sabe que isso apenas indica que ele abrange a mera política.
Este artigo é apenas sobre a parte ocultista de Dugin. Uma análise de suas fontes filosóficas e geopolíticas invariavelmente também levam a relações com o radicalismo de terceira posição, isto é, o fascismo e o nazismo como matriz de uma construção ideológica ao mesmo tempo criativa e perigosa.
Certamente este artigo será alvo dos duguinistas, que me acusarão de ser “politicamente correto”, isto é, ver conotação negativa tanto em ocultismo quanto em nazismo. Ou ainda, como já me acusaram, de estar baseado na dicotomia popperiana que distingue entre sociedades abertas e fechadas, suposta base de demonização dos fascismos e comunismos. Mas foi Dugin e não Popper, que reuniu justamente tudo o que há de totalitário contra o a liberdade humana, vista como “degradação moral ocidental moderna”.
Dugin está desde os anos 80 enfiado em círculos de intelectuais e grupos literários, poéticos, ocultistas responsáveis pela integração entre esoteristas russos e europeus. E nos bastaria ler False Dawn, de Lee Penn, para entendermos a força que esses movimentos orientalistas têm na condução da política mundial, principalmente entre globalistas, o que já relativiza a suposta oposição de Dugin em relação ao globalismo, direcionando o seu ódio, na verdade, para o Ocidente físico, geográfico.
Mas, para alguns, é claro que a Rússia foi maravilhosamente protegida dessa terrível força ocultista. Este erro trivial de análise poderá custar caro a conservadores e à direita brasileira que se entregam facilmente à narrativa de “renascimento espiritual” e cristão da Rússia contra os neonazistas ucranianos. Por trás de toda essa retórica, está uma verdadeira ameaça de retorno de ideologias embasadas em crenças ocultistas e neopagãs. Retirando as narrativas pseudo-científicas do nazismo, com as quais se justificou o racismo, sobra toda a base mística que no fundo orientou toda a doutrina de supremacia alemã. Na versão duguinista do tradicionalismo, os russos são “virtualmente iniciados” e a Igreja Ortodoxa Russa é essencialmente “iniciática”. Veremos neste texto alguns elementos que explicam com Dugin chegou a essa conclusão de supremacia espiritual russa.
No livro A Quarta Teoria Política, Dugin diz que é preciso afastar-se dos preconceitos anticomunistas e antifascistas, o que ele considera como uma espécie de submissão ao “politicamente correto”. Uma análise aprofundada das fontes formadoras da sua ideologia atual revela o motivo desse singelo apelo feito por ele.
Nos anos 90, Dugin ajudou a criar o Partido Nacional Bolchevique, que unia o simbolismo comunista com o nazista em uma aproximação política que ele considera, hoje, como um primeiro “experimento” antes da formação do atual neoeurasianismo e da sua quarta teoria. No entanto, o que guiou essa perigosa mistura ideológica permanece vivo e cada vez mais relevante.
Em 1997, Eduard Limonov deu uma palestra na qual mencionou algo do que estivera aprendendo com seu ideólogo Dugin. A palestra era intitulada “O russo filosófico” e foi dada aos membros do então Partido Nacional Bolchevique. Dugin teria dito que seria preciso criar um “novo tipo de homem” por meio de um trabalhoso autoaperfeiçoamento. Tratava-se do “russo filósofo”, pelo qual, só então seria possível iniciar uma revolução. Essa tese do “novo homem” de Dugin não tem a conotação cristã que possa ser imaginada, mas é parte de uma doutrina depois muito bem elaborada no livro Fundamentos da Geopolítica, o livro mais importante de Dugin até hoje, com quatro edições de 1997 a 2000.
De fato, a obra tornou-se tão influente que sua segunda edição incluiu um posfácio do tenente-general Nikolai Klokotov, ex-chefe da Academia do Estado-Maior das Forças Armadas da Rússia. Com base no legado de tais teóricos geopolíticos imperialistas e nazistas como Alfred Mahan, Friedrich Ratzel, Halford Mackinder, Karl Haushofer e Nicholas Spykman, Dugin explora a questão da geopolítica. Mas, se Limonov destacou o aspecto de “autoperfeição” de transição para o “novo tipo de humanidade”, o livro de Dugin delineava uma visão política e ideológica mais pragmática e estratégica que afetaria o mundo inteiro. Essa visão parte da ideia paligenética, isto é, do estudo do resgate da essência de um povo, algo que só havia sido feito antes pelos ocultistas que influenciaram a doutrina nazista. Esse estudo de Dugin se deve a toda a sua formação ao lado de mentes bastante influenciadas por essas ideias, além do ambiente russo da época, marcado pelo final da repressão soviética e a consequente ebulição de movimentos ocultistas.
Antes que digam que Dugin não apita mais nada na condução da política externa do Kremlin, é preciso lembrar de Ivan Ilyn, citado e recomendado pelo próprio Putin ao comando militar como leitura obrigatória. Como expliquei recentemente no podcast Observadores, Ilyn era anticomunista e antibolchevique e foi exilado pelos comunistas na Alemanha, onde ficou fascinado e convicto da superioridade do nacional socialismo alemão como alternativa para a Rússia. Portanto, as fontes nazistas recuperadas por Dugin possuem um propósito bem mais associado a Putin do que os seus admiradores gostariam de admitir. Vejamos.
“Ocultura soviética” como base do “renascimento espiritual” da Rússia
No final da década de 1970 e início dos anos 80, a União Soviética vivia um ambiente de popularização do ocultismo por meios oficiais, resumido por Christopher Partridge no termo “ocultura soviética”. A proliferação de círculos esotéricos por meio do ocultismo na literatura, combinado com a crescente institucionalização da parapsicologia nos departamentos científicos da inteligência soviética foram ingredientes para a ebulição desse fenômeno. Esse clima se definiu pela combinação de grupos que buscavam raízes do antigo esoterismo russo com tendências novas e pós-modernas de subversão.
Segundo Pavel Nosachev, os movimentos que viram emergir figuras como Yuri Mamleev e depois Dugin estavam marcados por três características em comum:
1) a opção por esoterismos de “caminho da mão esquerda” como forma de revolta contra o sistema soviético oficial;
2) a busca por relacionar práticas esotéricas com as religiões tradicionais, especialmente a Igreja Ortodoxa Russa; e
3) a predisposição para um sincretismo radical.
Esse clima trouxe o apelo a uma rebeldia boêmia e clandestina, diagnosticada como esquizofrênica pelo regime. Frequentemente, essa loucura radical foi marcada por experimentos de estados alterados de consciência no que era visto como “metafísica radical”, representados principalmente pelo Círculo Yuzhinsky.
Não há como entender o pensamento de Dugin sem conhecer algo do que produziu e estudou o Círculo Yuzhinsky, do qual fez parte nos anos de 1980 nos subterrâneos intelectuais de Moscou. Ainda hoje, ele considera o círculo como o local em que conheceu e aprendeu com seus “grandes mestres”.
Em uma entrevista dada em 2006, Dugin diz que sua formação ideológica, metafísica e política já estava plenamente definida por volta de 1981, o que nos poupará de eventuais considerações de que o ideólogo tenha mudado em suas referências e fontes esotéricas e ideológicas, sobre as quais falaremos aqui.
“Em 1981-82 eu já era um filósofo completo com minha própria agenda intelectual, com minha própria metafísica e ideologia”, escreveu em uma curta autobiografia que só pode ser encontrada pelo web archive. “Percebi-me como um rebelde da Tradição no deserto da modernidade, um homem do submundo metafísico, preparando uma vingança apocalíptica – sem esperança e, ao mesmo tempo, inevitável”, escreveu Dugin.
O Círculo Yuzhinsky foi especialmente influente no início da vida intelectual de Dugin e nos fornece importantes pistas sobre os ingredientes essenciais para a formação de suas ideias atuais.
Este círculo subterrâneo foi especialmente influente na “boheme de Moscou” moldando a vida intelectual underground das décadas de 1960 a 1980. O círculo acreditava no método de responder ao regime soviético sem uma ideologia política oposta, mas por meio de uma metafísica e na busca de um outro nível ou realidade. Essa busca esotérica contribuiu para a introdução do ocultismo nazista nos ambientes soviético e russo. Eles buscavam ir além do discurso político sobre o caminho único e específico da Rússia e apenas acrescentar uma visão mística que abrigasse o caminho que o país pudesse tomar. Em uma época marcada por profundo ateísmo oficial, o círculo pode ter oferecido um respiro espiritual.
Duas correntes ocultistas
De acordo com um levantamento histórico e filosófico de Jafe Arnold, do Centro de História da Filosofia Hermética do departamento de Estudos da Religião da Universidade de Amsterdã, o Círculo Yuzhinsky reunia as duas principais correntes ocultistas mais atuantes no mundo até aquele momento: o Tradicionalismo perenialista de René Guenón e a tradição do ocultismo Völkish ou wotanismo, criado por Guido von List, considerando ainda as contribuições de seus seguidores. O estudo das origens desses dois ramos das filosofias ocultas da Europa nos levam para domínios bastante sombrios e nos permitem compreender a formação das ideias ocultistas de Dugin como peças que se encaixam em seu atual quebra-cabeças ideológico. Vejamos cada um deles.
Tradicionalismo
O primeiro ramo, centrado na pessoa e obra do sufi muçulmano esotérico René Guénon (1886-1951), delimitou os conceitos de doutrinas tradicionais centrada na ideia de “Tradição Primordial”. De acordo com Arnold, a doutrina tradicionalista pode ser exposta em três hipóteses fundamentais:
- A “Tradição Primordial” e Perene como origem não humana e transcendente “da qual as várias tradições históricas e metafísicas são uma mera superfície aparente”;
- A modernidade ocidental é a “idade das trevas” final (chamada “Kali Yuga”), dentro do atual “ciclo cósmico” em virtude do caráter de oposição e inversão da Traição. Para Guenón “nunca a humanidade esteve tão seriamente alienada quanto hoje”; e
- A Tradição pode e deve ser recuperada por uma “elite intelectual” por meio da “iniciação” e “foco nos denominadores comuns das várias tradições religiosas e metafísicas”.
Este último ponto Guénon considera a sua própria definição de “esoterismo”, que ele considerava como sendo o nível mais profundo, oculto e superior de uma doutrina ou organização. Esse lado oculto coexiste e interage de forma dialética com o lado “exotérico”, externo e aberto dessa religião em suas formas rituais. Na visão de Guénon, a dimensão “esotérica”, que tem caráter iniciático, corresponde aos reais “princípios tradicionais” derivados da Tradição Primordial e, portanto, está relacionado à “iniciação” e à perene metafísica subjacente a todas as tradições. É neste sentido que Dugin se refere à palavra Tradição, isto é, apenas àquilo que liga as religiões ao mito da Tradição Primordial.
Embora críticos de Dugin o acusem de um certo rompimento com o tradicionalismo guenoniano ao escolher como padrinho filosófico o alemão Martin Heidegger, a acusação vai no sentido de que o russo possa ter trocado o rumo dos caminhos esotéricos ditos mais “nobres” ou “superiores” do guenonismo por uma versão contra-iniciática ou, em termos ocultistas, do “caminho da mão esquerda”, vertente que busca a iluminação através da destruição (do mundo, do corpo, das regras, da moral) ao invés do caminho da prática ascética dos tradicionalistas gnósticos do “caminho da mão direita” ou “loja branca”. A filiação de Dugin ao tradicionalismo guenoniano, porém, só são duvidosas atualmente, pois não sobram dúvidas, como mostra Arnold, do quanto essa corrente esotérica influenciou os seus primeiros trabalhos e atividades.
O tradicionalismo guenoniano é sem sombra de dúvidas a principal fonte que emergiu nos primeiros trabalhos de Dugin, além de suas atividades políticas. Do tradicionalismo, o ideólogo justifica hoje o apelo às religiões tradicionais, a defesa da Rússia ortodoxa e de todos os movimentos religiosos que tenham em si uma espécie de tradição própria, que estariam teoricamente justificados por, de alguma forma, direcionarem-se a uma Tradição Primordial, a um corpo único. Este foi o meio encontrado para fugir de conclusões relativistas para a sua defesa do Mundo Multipolar, no qual cada povo, região e tradição possui sua “própria verdade”.
Ocultismo Völkish
A segunda corrente ocultista de grande influência no Círculo Yuzhinsky, de acordo com Arnold, e que também teve seu papel na formação das ideias duguinianas, é o ramo ocultista iniciado por Guido von List, o chamado wotanismo ou ocultismo Völkish.
No final do século XIX, o ocultista e romancista austríaco Guido von List criou um movimento neopagão que considerou como um resgate da religião da antiga raça germânica na defesa de um renascimento cultural em nome dela. Guido é considerado um dos principais influenciadores do nazismo.
Lembra Arnold que, assim como os tradicionalistas, os ocultistas völkisch rejeitaram os mundo moderno como um estado de degradação, defendendo uma antiga tradição de sabedoria centrada no mito de um “protocontinente” perdido ao extremo norte da Terra, centro de uma “Idade de Ouro”, cujas doutrinas teriam sobrevivido e podiam ser reconstruídas por uma elite intelectual conhecedora dos elementos “iniciáticos” da religião, fontes mitológicas, esotéricas e ocultas. Apesar da semelhança com o tradicionalismo guenoniano, os ocultistas völkisch concentravam sua doutrina sobre uma missão cósmica delegada a um um “sujeito” histórico, o Volk (povo) ario-germânico ou raça ariana. Essa missão sagrada era vista como um conflito existencial com outras raças espirituais e biológicas, particularmente os eslavos e judeus.
A partir dessa perspectiva, List criou, na década de 1890, uma visão sobre o antigo culto Wotan como uma proposta de “religião nacional” ou “patrimônio nacional oculto e secreto” dos povos germânicos. Nessa época, List foi profundamente influenciado pela teosofia de Helena Petrovna Blavatsky, de quem trouxe a noção de evolução racial e técnicas de visões místicas que interpretava como vindas de um passado remoto. Em um período em que ficou temporariamente cego, List diz ter tido revelações sobre “o segredo das runas” nórdicas pelas quais teria aprendido a decifrar uma língua ancestral, a partir da qual teria então compreendido toda uma liturgia ritual dos antigos povos germânicos e sua ligação com o folclore remanescente, etimologia popular e a combinação com outras correntes ocultistas como a cabala, astrologia e maçonaria. Dizendo-se inspirado nessas revelações, List propôs a existência de uma teocracia ariana que incluiria elementos de uma doutrina exotérica além da esotérica, isto é, uma nova religião popular que ele chamou de Armanismo.
A conclusão final de seus estudos e revelações o levaram a se comprometer no projeto de um Reich alemão que restauraria a humanidade por meio de um evento apocalíptico de proporções escatológicas (seria o Holocausto?). Tudo confluiria para um “milênio armanista” e para preparar o mundo para isso, List criou a Hoher Armanen-Orden, em 1911, com objetivo declarado de doutrinar e ritualizar a reconstrução dessa religião ariana primordial que chamou de “ariosofia”. Para purificar a sociedade moderna, que se encontrada degenerada, List profetizou, portanto, o surgimento do Império Pan-alemão, que duraria mil anos e teria o seu wotanismo como religião oficial. Ele acreditava que isso aconteceria já na Primeira Guerra Mundial pela vitória das potências centrais, ou impérios centrais, formados pela Alemanha, Áustria-Hungria, Império Otomano e a Bulgária, ligados à Tríplice Aliança. Mas List morreu em uma visita a Berlim em 1919.
De acordo com Arnold, esses termos e modelos, assim como a busca espiritual pela revelação de uma missão espiritual ligada a um povo estiveram especialmente presentes no final do Círculo Yuzhinsky, motivo pelo qual aparecem nos primeiros trabalhos de Dugin.
Até aqui não parece haver nada de cristão, exceto o apelo tradicionalista segundo o qual uma religião exotérica tradicional, como o cristianismo, representaria, no fundo, uma expressão imperfeita, porém necessária, da Tradição Primordial. Sob o ponto de vista do wotanismo, no entanto, a inspiração é claramente neopagã e professamente anticristã. Todavia, foi com um dos discípulos de List que elementos cristãos se uniram a toda essa miscelânea.
Trata-se de Jörg Lanz von Liebenfels, um ex-monge cisterciense expulso do seminário devido sua má conduta, e que ficou fascinado pela obra de List, ao ponto de fundar a Sociedade Guido Von List, a List Society. Liebenfels publicou o livro intitulado Teozoologia, em que defendia a esterilização de pessoas pertencentes a “raças inferiores”, a submissão da mulher ao homem ariano e a “cópula de mulheres solteiras dispostas a serem mães com homens arianos louros e de olhos azuis em conventos de procriação”.
Para Liebenfels, Eva envolveu-se sexualmente com o próprio demónio dando à luz “raças inferiores”, o que ele acredita ser a explicação para a atração de mulheres alemãs pobres por homens ricos de pele escura como “judeus de aspecto submediterrâneo e não-nórdicos” que ele considerava como “quase símios transitórios”, em uma perspectiva claramente evolucionista e racista. Essa atração, para ele, representava a decadência que iria na direção do “parasitismo” dessas mulheres, característica que associava ao setor terciário da economia, como o financeiro dos banqueiros etc, visto como típico das raças inferiores. Liebenfels acreditava que esse “problema” deveria ser resolvido pela “desmistura racial”, ideal de purificação que ele relacionava profundamente ao cristianismo, uma maneira dos povos inferiores se aproximarem da divindade.
Foi a partir da leitura e influência de List e Liebenfels, que um terceiro nome aparece: o ocultista Rudolf von Sebottendorff, estudioso de sufi, rosacruz, maçonaria, cabala e astrologia, além de alquimia, foi após ser apresentado à obra de List e Liebenfels que decidiu incorporá-las, em 1918, à Sociedade Thule, movimento que se tornou o principal difusor da nova proposta de religião ariana. Tudo isso tornou possível a adoção ampla do simbolismo ariano por canais oficiais da Alemanha, especificamente a suástica e a águia, referências ao Urheimat do Norte, a terra sagrada nórdica, e à Thule, significando o resgate da antiguidade alemã.
Dessa forma, conclui Jafe Arnold que embora a corrente ocultista völkisch tenha apresentado mudanças ao longo do tempo, seus autores têm em comum a busca pela unificação e resgate de uma “tradição ariana primordial”. “Todos esses autores aparecerão na gramatologia esotérica inicial de Dugin e, assim, parecem ter representado precedentes prototípicos do que veremos ser a própria formulação de Dugin de uma identidade e missão espiritual escatológica para a Rússia”, escreve Arnold.
Ao menos nesta última corrente, vimos a influência clara da mística nazista como formadora intelectual de Dugin. Mas a outra, a linha tradicionalista que acredita na Tradição Primordial, também não deixa a desejar neste quesito, ao menos na acepção que Dugin faz dela.
Em um artigo sobre contra-iniciação, Dugin escreve:
Agora algumas palavras sobre a Tradição Primordial. Do nosso ponto de vista, os contornos desta Tradição foram delineados com espantosa clareza nas obras do professor alemão Herman Wirth, cuja resenha do livro Guénon publicou em Études Traditionnelles. De acordo com Wirth, todos os enredos mitológicos, símbolos, dogmas religiosos e rituais existentes, e além disso todas as línguas e alfabetos humanos, evoluíram de uma única protoforma de calendário: o Círculo Sagrado, acompanhado por um arranjo de signos protorrúnicos. Esta protoforma era uma descrição dos fenômenos naturais observados pela humanidade no Pólo Norte no antigo continente desaparecido de Hyperborea (ou Arktogaa). Assim, de um conceito abstrato, a Tradição Primordial tornou-se uma realidade tangível e concreta de um paradigma cujos principais contornos foram revelados de forma extremamente convincente e volumosa por Herman Wirth.
A “espantosa clareza” vista por Dugin na obra de Herman Wirth de fato nos revela algo mais sobre suas fontes. Dugin elogia bastante o trabalho de Wirth. Mas quem foi ele? Como estudioso de símbolos e história oculta, Wirth publicou um livro sobre a “pré-história da raça nórdica atlântica” que se tornou o livro principal do Círculo Völkish, movimento do século XIX que originou o nazismo e é frequentemente relacionado com a “Revolution Konservadora”. Wirth é considerado por alguns o fundador e inspirador da Ahnenerbe, espécie de think tank de difusão das ideias nazistas na Alemanha, criado em 1935, chegando a ser presidido por Fredrich Himmler. Os nazistas ficaram profundamente interessados nos estudos de Wirth sobre a origem dos continentes e das terras sagradas de Hiperbórea e Aktogaa, evidências da proximidade dos nórdicos com as raças originárias (que muitos ocultistas nazistas acreditavam serem extraterrestres).
Wirth embasou e inspirou expedições até o ártico em busca das terras sagradas que ele não acreditava ser míticas, mas reais e concretas. Foi sempre patrocinado por Himmler até ser afastado. Em 1979, ainda vivo, foi entrevistado pelo neonazista chileno Miguel Serrano, também estudioso de mitologia e que acreditava em uma “segunda vinda” de Hitler. Serrano conta que Wirth falou de uma importante obra antissemita sua teria sido roubada, o que veio sendo, mais tarde referido também por Dugin.
Mas vamos ao que diz Dugin sobre Herman Wirth.
“Como todos os heróis em tempos sombrios, em um nível externo ele encontrou a derrota, mas em um nível espiritual ele subiu para o Triunfo e a Vitória. Quanto mais escura a noite, mais próximos estão os raios dourados da aurora, o nascer da Aurora. Entre nós viveu um homem que revelou os grandes segredos, que decifrou o segredo do passado, um homem que reconstruiu toda a linguagem da Grande Tradição Primordial, mas que era virtualmente desconhecido, despercebido, incompreendido e não lido. Apesar de Julius Evola ter chamado Wirt de um de seus três professores (junto com Réne Guénon e Guido de Giorgio), e também apesar de Guénon ter dedicado grande parte de seus estudos sobre o ciclo e os simbolismos das raças humanas a Wirt, o Os tradicionalistas de hoje ignoram completamente esse grande autor. É tão estranho que levanta suspeitas. Estão mesmo os escolhidos nas sombras e cobertos pelo manto da meia-noite? Sua imprudência e desejo de manter uma ortodoxia fantasiosa não expõe sua própria paródia e fraude?
Em outro ponto do texto, a rejeição a Wirth é creditada por Dugin ao “politicamente correto”. De fato, não é nada bonito se basear em estudos que apontam para a superioridade racial ariana por meio do aparentemente singelo interesse por runas ou terras sagradas hipotéticas.
Além de Dugin e seus seguidores, o trabalho de Wirth influenciou fortemente o ocultismo nazista por meio do movimento Völkisch, inspirador mais proeminente do próprio Holocausto através de seu lema “sangue e solo”. O movimento não tinha um conjunto homogêneo de crenças, mas uma espécie de subcultura que se opunha às mudanças socioculturais da modernidade. A ideia comum que os identificava, porém, era a noção de renascimento nacional inspirada em tradições germânicas que haviam sido “reconstruídas” numa base romântica pelos adeptos da filosofia do século XIX na Alemanha. Este renascimento teria sido alcançado tanto pela “germanização” do cristianismo, considerado uma religião abraâmica, semítica, que se espalhou para a Europa a partir do Oriente Médio, portanto inferior. Eles rejeitavam qualquer herança cristã que existisse na Alemanha e apoiavam o paganismo germânico pré-cristão.
Em seu artigo sobre a contribuição de Wirth, Dugin encerra da seguinte forma:
“Mas as obras de Herman Wirth não foram perdidas. A Luz do Norte queima em nossos corações. A Rainha do Inverno arrebata nossas almas e as encanta com a magia do sono polar. Lá, na noite ártica, em Arctogaia, nós, sob o nome iniciático de Kai – o ressuscitado, aquele que ascende, aquele que pertence à primavera do Ano Divino – juntamos os pingentes da palavra mágica, EWIGKEIT, a palavra favorita do professor alemão Herman Wirth”.
Origem maçônica do Círculo
O nome do Círculo Yuzhinski se refere ao príncipe georgiano Alexander Sumbatov, que utilizava o pseudônimo Yuzhin. Ele dominou o teatro russo na virada do século e era um maçom, iniciado na loja maçônica “Renascença”, do Grande Oriente da França, em Moscou. Essa loja teria se destacado por criar uma rede de outras lojas e círculos nos quais se organizavam encontros na primavera após a Revolução de 1905. Os círculos Renascença reuniam radicais políticos, ricos e nobres da época, unindo ideias políticas com interesse em estudos esotéricos em uma grande integração entre membros de lojas de toda a Europa. “Ao longo do período da turbulenta série de acontecimentos que culminou no desmoronamento do Império Russo, muitos dos membros deste meio encontraram-se no cume da política e da estrutura do Estado, muitas vezes precisamente graças às suas conexões maçônicas”, conta Arnold.
Atuante na política, Yuzhin-Sumbatov foi promovido a diretor do Teatro de Moscou no mesmo ano de sua iniciação na loja Renascença. Sua fama internacional e contatos maçônicos lhe rendeu uma aproximação com o comissário do Povo Soviético para a Educação, espécie de ministro, Anatoly Lunacharsky, que também era um praticante da teosofia e ocultista com ideias de inserção do ocultismo para o teatro da URSS, para simplesmente recrutar ocultistas em uma colaboração com o estado soviético. O lado ocultista e místico de Yuzhin contrasta com a sua postura pública. Em sua biografia oficial, Yuzhin era um homem realista, amante do progresso e inimigo do misticismo. Mas por trás das cortinas do teatro comunista, ele defendia um teatro-ritual por meio da adoção de esoterismos. Na verdade, ele foi um dos mais importantes canais de transmissão de fontes e conteúdo esotérico entre a União Soviética e a França, já que vivia entre os dois países. Essa integração de ocultismos foi, segundo Arnold, decisiva para o desenvolvimento de todos os que participaram do círculo nas décadas seguintes, o que podemos incluir aí a obra de Renê Guenón, apenas para citar a fonte mais óbvia.
Um dos mais influentes membros do círculo e um dos mestres de Dugin foi o novelista e comancista Yuri Mamleev, que acreditava na exótica tese de que o cristianismo ortodoxo russo possuía uma identidade espiritual em comum com o hinduísmo, tendo dedicado parte da vida para aproximação das tradições religiosas russa e indiana como parte de um projeto de construir um “esoterismo eslavo”. Ele acreditava em uma perspectiva gnóstica do mundo no qual o aspecto físico do mundo é ilusório e maligno. Suas principais influências foram os teosofistas Rudolf Steiner e Helena Blavatsky. Em seu último trabalho, Eternal Russia, Mamleev enfatizava Steiner como um visionário da missão espiritual única da Rússia.
Dugin deve a Mamleev grande parte de sua formação, assim como a todo o período que esteve no Círculo. A união entre guenonismo e ocultismo völkisch, como veremos, aparece claramente na sua fisionomia ideológica atual. A partir de uma base profundamente guenoniana, Dugin começou seus trabalhos difundindo a tese de que o cristianismo ortodoxo russo é autenticamente iniciático e o povo russo possui essa tendência iniciática. Para ele, o povo russo já possui uma “iniciação virtual”, motivo pelo qual será a partir de uma elite russa que virá a salvação da humanidade. “Se ainda existe a possibilidade de salvação para nossa civilização ‘contra-iniciática’, então a Rússia ‘iniciática’ ortodoxa não será o melhor lugar para essa ascensão?”, diz Dugin em Russian Orthodoxy and Initiation. Ele afirma que de posse dessa “iniciação virtual”, como comprovação da missão espiritual russa, essa elite russa iluminada irá “lançar a ‘nação da besta vermelha’ nos céus espirituais da Santíssima Trindade como o próprio Cristo, libertando o Velho Adão das armadilhas do inferno”. Com base no que vimos até agora sobre a mescla nada ortodoxa entre tradicionalismo e wotanismo, podemos imaginar que a ideia de Dugin sobre Cristo, Santíssima Trindade e Céus pode ser bastante diversa daquela encontrada nos catecismos. Não é preciso pensar muito para compreender que ele adapta o sentido de “iniciação” guenoniano sob uma perspectiva idêntica aos discursos messiânicos do ocultismo völkisch. Ou seja, o que é a iniciação senão uma superioridade diante dos não iniciados? Não seria a superioridade ariana, dos wotanistas germânicos, o mesmo que uma “iniciação virtual” dada pelo Eterno a um povo simplesmente por sua descendência germânica? No lugar da raça, Dugin insere o solo russo, a “russidade” que concede “iniciação” desde que assumida na adesão à verdadeira Tradição.
Outra figura importantíssima para a formação de Dugin, tendo sido seu iniciador principal no Círculo, foi o muçulmano Geydar Dzhahidovich Dzhemal, principal responsável pelo contato do círculo com a obra de Guenón. Seu foco no tradicionalismo islâmico, porém, o conduziu para um caminho muito semelhante ao dos ocultistas völkisch, dos quais tinha também muita influência. Em seu trabalho intitulado Orientation: North, Dzhemal conclui sua busca pelo “pólo do impossível”, em analogia à busca do eu, como o que considera o “pivô” que “transcenderia todas as equações metafísicas” como o “polo eterno” para o norte. “Aquele que vai para o Norte não teme a noite. Porque no céu do Norte não há luz”, escreveu. A sua conclusão não estava de todo distante das polêmicas que circulavam entre os ocultistas da época que se baseavam em Guenón, afinal, o sufi francês frequentemente insistiu que a Tradição Primordial só poderia ser nórdica, o que significaria ser polar. Eles diziam isso baseados nos textos védicos e outros livros sagrados.
Essa tradição nórdica era chamada de Hiperbórea, que significava “além do bóreas (vento do norte)”, representando o “início do ciclo cósmico”, o que, segundo Guenón, não poderia ser confundido com a Atlântica ou a “tradição atlante”, esta considerada uma degradação da tradição hiperbórea. Pior do que isso: a tradição atlante é associada a terríveis e perigosas doutrinas “contra-iniciáticas”. A Atlântica é vista como a representação das terras marítimas e, portanto, da tradição de domínio marítimo, predominantemente comercial e viajante. Essas ideias foram profundamente influentes para outros ocultistas e polemistas como Julius Évola, também de grande apreço pelos membros do Yuzhinski, que embasavam o seu racialismo espiritual que concluía na superioridade da região centro europeia em relação aos povos do Mediterrâneo, judeus e outros. Além de Guenón, umas das fontes principais para essas crenças em Évola foi Herman Wirth.
Por fim, também Dzhemal acabou descobrindo e se encantando com as fontes do misticismo nazi através do trabalho de Armin Mohler (1920-2003) sobre a Konservative Revolution da Alemanha que o apresentou nomes como List, Liebenfels, Sebottendorff e Wirth.
É a partir dessa metafísica, fonte em comum com o nazismo, que Dugin irá formatar a sua geopolítica, centrada no norte, nas potências terrestres como representação da tradição hiperbórea, contra as terríveis e contra-iniciáticas doutrinas do atlantismo, encarnado hoje ideologicamente sob o nome de globalismo, mas que, no fundo, representam lugares no espaço, terras, mares e povos contra os quais a guerra parece ser um evento escatológico e portanto inevitável, uma profecia auto-realizável.