Desde o início da invasão russa à Ucrânia, muitos conservadores se viram tentados à simpatia por Putin e sua postura de aparente enfrentamento às mesmas nações ocidentais que impuseram restrições sanitárias da pandemia. Doloridos pela traição de seus governos, alguns viram com simpatia o presidente russo e o seu projeto expansionista, visto como mera “legítima defesa” russa. Para legitimar sua simpatia, porém, esses conservadores precisam convencer a si mesmos de algumas mentiras que, oportunamente, já estão devidamente embaladas para presente pela propaganda eurasiana.
A pandemia impulsionou o ódio de conservadores aos governos ocidentais, o que não foi sem razão. No entanto, agora podemos imaginar o quanto isso está ajudando o trabalho de cooptação internacional para a Rússia, tarefa que muitos acreditavam que havia cessado na guerra fria com os agentes da KGB espalhados pelo mundo. Hoje eles nem precisam ser pagos pelo Kremlin.
Os seus agentes são involuntários, alguns até esperançosos e amantes do que acreditam ser uma boa sociedade, mas caem na esperança da salvação mediante um governo ou um império global. Essa óbvia crença revolucionária, no entanto, por mais obviamente demagógica e ideológica que pareça, seduz quem está cansado de sofrer com os globalistas. O cansaço, seja de pensar ou de agir, como sempre é o combustível da tentação que leva às ideologias mais sanguinárias. Em nome da adoração à Rússia, eles justificam de todas as formas a invasão de países em nome do pretenso antiglobalismo de Putin.
Essa crença ultrapassa os influenciadores das redes sociais, chegou a Brasília, à política e aos altos escalões militares. O grande amigo do ministro da defesa, o ex-ministro comunista Aldo Rebelo, por exemplo, já criou um movimento da “esquerda nacionalista”, que em breve dividirá o palco com a progressista na mais nova tesoura política nacional. É o que se vê.
Para circularem entre os conservadores, porém, eles precisam desvincular o ideólogo Aleksandr Dugin do presidente Putin, já que o russo acabou sendo humilhado por Olavo de Carvalho no debate travado em 2011 e ninguém quer parecer antiolavista de última hora. Alguns fizeram malabarismos, como é o caso do influente texto do blog Contra os Acadêmicos, que tentou livrar a cara da Igreja Ortodoxa mediante falsificações de falas de Olavo para dizer que ele não disse o que disse (o que mereceria um texto exclusivo, quem sabe).
Há todo um universo de tipos e subtipos de defensores da Rússia no atual momento: há os que simplesmente simpatizam com a Rússia de Putin por vê-la como solução contra o globalismo – estes precisam acreditar na desvinculação entre Putin e Dugin. Alguns realmente não a veem como verossímil porque sabem pouco ou nada sobre Dugin; há os declaradamente duguinistas (sobre estes nem vamos nos ocupar muito no momento) e os duguinistas enrustidos, isto é, que sabem da relação possível, mas ou são indiferentes a ela ou a aceitam, mas precisam disfarçá-la em nome de uma necessária “revolução conservadora” que pensam ser mais urgente que quaisquer debates.
Primeiro, é importante partirmos do ponto de que o movimento de Dugin é revolucionário no início ao fim. Tendo em conta a influência de Olavo de Carvalho nos nossos leitores, parece necessário apelarmos para o seu conceito de mentalidade revolucionária como expediente ideológico responsável pelos maiores massacres da história humana. Olavo considera como primeira característica revolucionária o desejo ou proposta de concentração de poder para resolução de problemas sociais ou históricos (já descritos sob medida para a solução almejada). A partir daí, o programa não pode deixar de lado componentes ideológicos e propagandísticos que incluem a falsificação da realidade, como a inversão do tempo, que põe o futuro ideal e hipotético como juiz do presente, entre outros elementos.
Neste sentido é que costumo dizer que os ditos conservadores que têm caído nos braços da Rússia sempre foram, na verdade, revolucionários assintomáticos, para usar um conceito inventado na pandemia. O pensamento de Dugin, portanto, é importante para confirmar essa minha “tese” do “revolucionário assintomático”. Tanto é que os próprios duguinistas enrustidos precisam afirmar a irrelevância total do “guru de Putin”.
Vamos começar falando da importância de Dugin. Afinal, quanto tempo dura a hipótese do “Dugin irrelevante”?
Relevância no governo russo
Com base em informações públicas, sabemos que Dugin é filho de um oficial da inteligência soviética, a KGB, o que o rendeu a ele proteção nas confusões em que se envolveu nos anos 80 e 90. Em 1997, Dugin publicou o livro Fundamentos da Geopolítica, em parceria com um oficial do Ministério da Defesa da Rússia e foi listado na bibliografia da Academia Militar do Estado Russo como livro didático. Será que Putin tem tanto poder para ignorar um livro didático da academia militar? Se ele é tão independente em suas decisões, talvez a narrativa de que a Rússia atual é tão livre quanto os EUA ficaria prejudicada. Pois bem.
De acordo com o artigo Eurasianism “Classical” and “Neo”: The Lines of Continuity, de Mark Bassin, que pode ser lido no Research Gate, o “neoeurasianismo” pode ser muitas coisas e possui diversos grupos e escolas, mas a predominante no governo russo é, de fato, a versão duguinista.
“Apesar do esforço geral, a escola Neo-Eurasiana foi a que mais ganhou ênfase na política russa desde o início do presente século. Dentre as suas diferentes perspectivas carregadas por nomes como Evgenii Primakov, Gennadii Ziuganov e Aleksandr Dugin, entende-se que este último tem maior aplicabilidade, haja vista sua relevância para estudos geopolíticos, assim como seus esforços para institucionalizar sua contribuição dentro e fora da Federação por meio da criação do Partido Eurasiano e do Movimento Eurasiano Internacional, respectivamente (Bassin 2015).
Mark Bassin é um geógrafo sueco especializado em geopolítica russa e alemã. Além de seus muitos títulos na área, o mais relevante é mencionar que ele pertence a um fórum de discussão com sede em Moscou que está intimamente associado ao presidente Vladimir Putin, o Valdai Discussion Group. Ou seja, se o pesquisador costuma se reunir com o próprio Putin e diz que Dugin é mais do que relevante, a proposta de desassociá-los começa a parecer absurda e forçada. Mas não pára por aí.
Ele classifica Dugin como alguém “onipresente” na discussão sobre a geopolítica russa justamente por seu esforço de manter certa continuidade com os eurasianistas das primeiras décadas do século XX, em republicações para a popularização daqueles e a sua insistência em se colocar como representante atual desse movimento, o que segundo Bassin, tem conseguido de maneira impressionante.
Considerando apenas essa opinião de alguém próximo a Putin, a discussão já poderia estar encerrada sem que precisássemos recorrer a outras obras, já que muitas delas poderão ser acusadas de “globalistas” pelos enrustidos ou “atlantistas” pelos assumidos.
Sendo Dugin um filho de membro da KGB, Putin um ex-dirigente da KGB, parece que a relação deles não é apenas verdadeira e evidente como obrigatória pela própria natureza do serviço secreto russo. A tentativa de desvinculá-los vai ficando cada vez mais bizarra à medida que avança.
Afinal, dizer que Dugin não tem influência sobre Putin, necessita da premissa de que a KGB não teria mais qualquer poder sobre o Kremlin, já que a ligação entre ambos e a KGB é óbvia e cristalina. Isso tudo ainda significaria acreditar na história de que a KGB mudou sua natureza, tornando-se a FSB. O órgão precisaria ser menos relevante que um cartório ou um ministério de governo democrático, no qual a mudança de governo modifica periodicamente toda a sua estrutura. Acreditar nisso significa desconhecer a diferença entre nações ocidentais e não ocidentais.
Afinal, seria preciso recorrer novamente a Olavo e sua teoria dos agentes históricos, explicada tantas vezes. Mudanças históricas só podem ser determinadas por forças que durem mais que uma vida humana. Estados nacionais mudam sua administração a cada quatro ou cinco anos, ou pelo menos podem mudar. Mas estamos falando de países democráticos, cujas mudanças históricas não podem ser feitas por seus governos temporários, mas por organismos, internos ou externos, que possam manter uma influência por longe tempo. Esse é o conceito da KGB, mas tem gente por aí pensando que ela é apenas um clube de velhinhos que gostam de geopolítica.
O Guru
Nas redes sociais, muitos ironizam o termo que venho usando em matérias do BSM, classificando Dugin como o “guru de Putin”, em óbvia repetição do que a mídia fez com Olavo. Mas será que, ao contrário de Olavo, para Dugin o termo não seria mais apropriado?
Fiz isso porque pensei que era óbvio que chamar Olavo de “guru” de Bolsonaro era uma forma de reduzir ele a ideólogo. Enquanto isso, Dugin que é assumidamente ideólogo, não pode ser chamado de guru sem que uso seja visto como a mesma sacanagem feita contra Olavo e, portanto, um “expediente da mídia esquerdista”. É inacreditável a crise cognitiva. Dugin assumiu diversas vezes ter ele próprio fornecido uma “ideologia” aos militares russos que teriam ficado “perdidos” em meio à ocidentalização após o fim da URSS. E, segundo conta Dugin, foi depois dele ter levado a sua geopolítica russa aos oficiais (aquela inversão da teoria de Halford Mackinder que Olavo desmontou no debate), que Putin teria ascendido em meio ao serviço secreto para assumir o atual posto.
Afinal, o aparecimento de Putin foi “profetizado” por Jean Parvulesco nos anos 1970, em que se anunciava o surgimento de um governante que iria unir “as Rússias” e estender ao mundo as bênçãos russas (ou os erros da Rússia). Ou seja, Putin é uma espécie de escolhido, um Neo da Matrix duguinista.
Sobre a natureza diversa de Dugin e Olavo, se ainda não está claro, vejamos o que disse o professor após o debate em resposta a um aluno que ficou impressionado com a superioridade intelectual de Olavo frente a Dugin.
“Não é muito difícil ser superior ao Duguin porque, embora ele seja um homem extremamente inteligente, ele não está empenhado na busca da verdade, de maneira alguma. O que ele fez é o seguinte: o Duguin é um patriota russo que vê a sua nação em frangalhos e inventou um truque para tirá-la do atoleiro. Tanto que, você veja, ele não era eurasiano no começo, ele era um nacional-bolchevique. O que é um nacional-bolchevique? É um patriota que quer juntar todas as forças para levantar a Rússia, só isso. Depois que ele descobriu: “Opa, a Rússia sozinha não vai conseguir, então precisamos juntar mais gente”, então chama os chineses, chama os islâmicos, chama os fascistas, chama os nazistas, chama os comunistas, chama tudo o que não presta, ajunta todas as máfias e, em seguida, o que você faz? Você coleciona um monte de clichês que pegou de cada um e costura um clichê no outro, de modo que você fale a todos os corações e que você consiga envolver todo mundo no grande empreendimento que, no fim da contas, só visa uma coisa: tirar a Rússia do buraco. Então é claro que ele não está falando a verdade, é claro que ele está mentindo. Então não é um problema de superioridade intelectual, é um problema que eu estou entrando ali no debate com uma superioridade moral monstruosa. Ele tem uma agenda para defender e eu não tenho nenhuma, eu posso dizer a verdade, ele não pode. Não é nem mérito meu dizer a verdade, é simples obrigação, obrigação porque eu posso. Mas, na posição em que ele está, ele tem de honrar a camiseta”.
Dito tudo isso, não resta muito a acrescentar para compreendermos que os pró-Rússia da direita brasileira (o que infelizmente inclui gente do governo) estão entrando num caminho sem volta em apoio a uma ideologia revolucionária da qual o comunismo foi apenas uma de suas manifestações.
Por que caem na propaganda?
Os conservadores não aprenderam nada sobre movimento revolucionário. A maioria precisa de declarações expressas para acreditar estar diante de um inimigo. É preciso que o sujeito chegue e diga: “é um assalto”, quando normalmente deveria bastar ver o cidadão se aproximando.
Isso porque a maioria dos conservadores aprendeu a identificar muito bem a presença da agenda globalista, mas não cuidou de saber entender o objetivo final das esquerdas. Esse erro, no entanto, por não representar grande prejuízo no trabalho que apenas se resume a identificar a presença, acabou sendo cristalizado em uma visão errada da esquerda e num costume de análises superficiais. Como ninguém sentiu falta de observar melhor a intenção real por trás, acaba que essas pessoas foram incapacitadas de identificar a ideologia eurasiana, precipitando a direita em geral a cair fácil nessa ideologia sem perceber.
Por exemplo, o objetivo dos globalistas sobre a família é dialético: destruição da família ou do conceito de família? Os dois, ora. Mas o do conceito é o objetivo de mais importância, porque ele dá à elite jurídica o poder de definir conceitos por maioria de votos, sejam eles quais forem. O conservador médio se apegou ao conteúdo e não à forma. Como a direita vê como objetivo apenas a destruição da família de fato (divórcios, promiscuidade etc), acostuma-se a ver as agendas por sua mera aparência declaratória. Por isso, quando vem um Dugin falando mal do ocidente moderno e liberal, essa direita simpatiza imediatamente com o seu discurso.
Mas o conteúdo de cada ideologia depende das condições ambientais, isto é, das crenças e lealdades existentes na sociedade-alvo.
Diferente dos eurasianos, os globalistas podem dizer que querem dominar tudo pra destruir a família e implantar o aborto e os “banheiros igualitários”, a linguagem neutra. Isso porque eles próprios já criaram um público que deseja isso, os militantes universitários, a esquerda progressista e seu exército de lumpenproletariado. Já a Rússia não pode dizer que vai dominar tudo para implantar um ordem russa de autoridade suprema da KGB, porque isso só agradaria neofascistas e comunistas mais radicais. Então, ela precisa prometer justamente a libertação do sistema vigente, confundindo propositalmente o Ocidente com globalismo, para tornar verossímil uma luta de ocidentais contra si mesmos para abrir caminho à dominação russa, chinesa e islâmica.