A história do nacionalismo russo tem vários episódios e descontinuações ao longo do século XX, mas as vertentes atuais buscam resgatar e reuni-los para formar a unidade da ideologia oficial da Rússia contemporânea. Muito antes de Alexander Dugin e Eduard Limonov criarem o Partido Nacional Bolchevique, em 1994, movimentos pelo mundo já sugeriam a tendência da união entre nazismo e comunismo.
É compreensível que muitos conservadores brasileiros aliados de Bolsonaro (senão o próprio) acabem vendo com bons olhos quando uma grande potência como a Rússia apareça defendendo valores como o nacionalismo. O problema em admirar o nacionalismo alheio está no desconhecimento da história de como as ideias se desenvolveram naquele país e como se apresentam de fato na atualidade.
Alguns jornais brasileiros, especialmente no sul do país, elogiaram Hitler no início do seu governo por verem ali uma liderança forte e defensora do próprio país. Felizmente, mudaram de ideia depois de ver o resultado, que estava já explícito nas teses que levaram os alemães a usar aquele discurso político.
A dicotomia direita x esquerda não nos ajudou historicamente a identificar a real diversidade de teses totalitárias que se abrigam sob o guarda-chuva da mentalidade revolucionária, como bem define Olavo de Carvalho. Por isso, chamou pouca atenção o surgimento do movimento nacional bolchevique (nazbol) na Rússia na década de 1990, pelo mesmo motivo que a imprensa motivada por ideias de esquerda ainda classifica o nazismo como sendo um movimento “de extrema-direita”.
A confusão fica ainda maior no Brasil, onde recentemente esquerdistas do PDT se queixaram de uma “infiltração” de fascistas no partido através do grupo Nova Resistência, seguidores de Alexander Dugin no Brasil. Isso mesmo. No PDT de Ciro Gomes. Para eles, é estranha essa aproximação. Mas, como veremos, a história de amor entre nazistas e comunistas é longa e não tem data para acabar.
Rússia e Alemanha: intercâmbio de nacionalismos
A mistura entre o nacionalismo e o comunismo tem raízes já no momento da Revolução Russa, em 1917, quando o grupo dos chamados “brancos”, fiéis ao regime czarista, alimentaram esperanças de misturar o nascente bolchevismo à antiga crença russa de que o país tinha a missão de cristianizar o mundo através de um império cristão mundial. Aliados aos ateus do regime, os nacionalistas tiveram dificuldades sob o governo de Lênin e foram até perseguidos, mas algum espaço tiveram com Stalin, tido por muitos como o mais fascista dos comunistas.
Mas o nacionalismo russo guarda incríveis relações com o alemão, fruto de um grande compartilhamento cultural entre os dois países ao longo da história, antes do rompimento na Segunda Guerra.
O nacional-socialismo alemão emergiu de um debate entre comunistas e nacionalistas que incluíam os soviéticos. Em uma análise dos movimentos existentes em 1951, Klemens von Klemperer (1) diz que o nacional-bolchevismo representa um capítulo do relacionamento russo-germânico desde a Primeira Guerra Mundial.
Mas, mesmo findada a Segunda Guerra, em 1949, a Alemanha viu surgir o Partido Socialista do Reich, que era financiado pela própria União Soviética. O partido reunia os descontentes do Partido Socialista Alemão, derrotado pela vertente hegemônica de Hitler. Os nacionalistas de esquerda alemães criticavam Hitler por sua falta de ênfase na economia socialista, mas concordavam com todo o resto.
Durante o período soviético, o escritor e poeta subversivo Eduard Limonov acabou fugindo da URSS por fazer literatura proibida pelo regime. Foi para os EUA, onde se relacionou com a nata da esquerda progressista da Escola de Frankfurt, retornando à Rússia somente nos anos 1990, quando criou o Partido Nacional Bolchevique. De acordo com a Rádio Free Europa, Dugin e Limonov criaram juntos o movimento.
Em 1994, Limonov lançou o jornal ultranacionalista extremista “Limonka”, que rapidamente começou a atrair vários grupos de jovens frustrados com as dificuldades das reformas e amargurados no Ocidente. Dugin era o editor do jornal e principal ideólogo do movimento, embora Limonov fosse uma espécie de mascote por sua estética rebelde e ocidentalizada.
“Foi um esforço, e bem sucedido, para mobilizar a parte mais apaixonada e intelectualmente insatisfeita da sociedade”, escreveu Limonov mais tarde. O partido utilizava o símbolo comunista, mas dentro de uma bandeira que imitava clarament a estética nazista.
Armado por sua experiência política no Ocidente, Limonov propôs a criação de um “partido revolucionário de um novo estilo” que pudesse atrair os jovens com uma combinação de propaganda extremista ultranacionalista e “ação direta”, inspirada no que viu na França.
Limonov sugeriu chamar o novo partido de Nacional Bolchevique, pois acreditava que o comunismo como palavra foi comprometido pela política “reacionária” do Partido Comunista, ao qual ele também culpa por “perder a URSS”.
“É um projeto estético pós-modernista de provocadores intelectuais (no sentido positivo da palavra) no qual muitas personalidades brilhantes e não triviais como Eduard Limonov, Aleksandr Dugin, Sergei Kurikhin e [analista] Stanislav Belkovskii estavam envolvidos”, disse Ponamarev.
“Foi um esforço, e muito bem-sucedido, de mobilizar a parte mais apaixonada e intelectualmente insatisfeita da sociedade (ao contrário do Partido Comunista, que utilizou os protestos sociais e econômicos do eleitorado de esquerda). A NBP usou uma mistura bizarra de símbolos totalitários e fascistas, dogma geopolítico, ideias esquerdistas e demagogia nacional-patriótica.”
O movimento ganha o regime
Em 1998, porém, houve um afastamento entre Dugin e Limonov, o que fez com que a FSB (antiga KGB) perseguisse o partido, chegando a prender Limonov por subversão. Segundo a reportagem da Rádio Europa, a FSB e o regime de então já eram simpaticos às ideias de Dugin de resgate do velho nacionalismo. De fato, embora Limonov chamasse mais a atenção, Dugin era filho de um oficial da inteligência soviética e altamente influente já na década de 1990, antes mesmo dele ter trabalhado com deputados da Duma e fundado, em 2002, o Partido Eurásia.
Segundo o livro de Charles Clover, “Black Wind, White Snow”, Alexander Dugin se envolveu com ocultismo na juventude, especialmente com a obra do ocultista britânico Aleister Crowley e sua “Lei de Thelema”. Além disso, Dugin começou a se opor ao governo soviético a partir de sua admiração por Adolf Hitler. Mas foi com a obra do fascista italiano Julius Évola que Dugin se uniu à chamada Escola Tradicionalista, cujo principal expoente é o esotérico francês muçulmano René Guenón.
Ainda na década de 1980, Dugin pertenceu ao chamado Círculo Yuzhinsky, onde ele conheceu o que classificou como “os verdadeiros mestres da elite esotérica de Moscou”. Lá ele teria sido iniciado por Geydar Dzhemal, famoso ativista islâmico da Rússia. Conta-se que Dzhemal foi influenciado pelo misticismo nazista por meio de Armin Mohler e outras influências comuns ao líder da SS, Heinrich Himmler, popularizadas depois por Evola.
Mas de acordo com artigo de Wahid Azal, publicado no site Counter Punch e traduzido por El Coyote, a posterior adesão de Dugin ao pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger pode ter indicado um rompimento radical com a escola tradicionalista e a adesão a ideias mais radicais ligadas a escolas esotéricas mais sombrias.
Os nacional bolcheviques se uniram a Dugin, que passou a usar a bandeira preta com a estrela do caos, possível referência ao ocultismo de Crowley no que chamava “magia do caos” ou “caoismo”, indicando um método heterodoxo de militância política. Dugin critica a modernidade a partir de elementos estéticos tanto tradicionais quanto pós-modernos.
Recentemente, a revista Foreign Affairs classificou Dugin como “o cérebro de Putin”. De fato, o russo não carece de bons contatos em seu país.
Dugin é chefe do Departamento de Sociologia da Universidade de Relações Internacionais de Moscou e conselheiro de Sergei Naryshkin, membro chave do partido Rússia Unida de Putin. Ele também passou os últimos 20 anos defendendo a restauração do Império Russo por meio da compartimentação das ex-repúblicas soviéticas. Recentemente, foi vítima de um abaixo-assinado que pedia a sua expulsão da Universidade, depois que incitou alunos a literalmente matarem ucranianos.
Um dos principais motes de Dugin tem sido “além da direita e da esquerda”, sugerindo que tanto conservadores quanto esquerdistas podem estar unidos à sua proposta geopolítica que inclui o expansionismo da Rússia.
Atualmente, tantos as ideias de anexação da Criméia quando da invasão da Ucrânia coincidem com as propostas de Dugin, Limonov, e do sonho dos expansionistas russos brancos, do tempo da revolução. O símbolo dos brancos é a bandeira tricolor, adotada pela Rússia após a dissolução da União Soviética.
Portanto, não é errado dizer que a Rússia não é mais comunista. O problema disso é que serve para ocultar o fato de que a “transfusão ideológica”, como explicou Olavo de Carvalho, levou a Rússia a algo ainda mais radical que o comunismo que se propõe ateu. Trata-se de uma guinada para o nacionalismo, mas um nacionalismo amparado em tudo o que houve de pior no século XX.
Dugin tem razão ao dizer que a dicotomia direita x esquerda não ajuda. Mas certamente ajudou ele a transitar inclassificável mesmo representando uma corrente obviamente “nazicomunista”. Um dos antídotos para essa cegueira que hoje abrange os debates públicos, talvez fosse a compreensão do conceito de mentalidade revolucionária, segundo Olavo de Carvalho, que a define como o impulso na concentração de poder nas mãos do estado ou de um partido como solução para problemas quaisquer, além de outras características psicológicas bastante comuns nesses movimentos.
Quando entendemos que tanto o nazismo quanto o comunismo são ideologias revolucionárias idênticas por estarem inseridas nessa mesma mentalidade, fica mais fácil identificarmos uma proposta ideológica.
Como muitos classificam o nazismo de direita, associado a moralismo e até ao cristianismo e tradições, e o comunismo de esquerda, apenas no aspecto econômico e político, a mistura dos dois aparenta algo inofensivo ou insignificante e não a união mortal entre duas forças malignas que já deram mostras suficientes do seu poder de destruição.
Mais relevante do que a mera defesa retórica de valores ou tradições ou de sistemas políticos igualitários, o movimento de Dugin e Limonov resgatou a parte espiritual do nazismo e do comunismo: o ódio à religião verdadeira e a paixão por ocultismo como práxis política.
1. Fourth Reich? The History of National Bolshevism in Germany, da revista Review of Politics
The concept of “national bolshevism”: an interpretative essay van Ree, E.