A técnica jornalística orienta para o uso da famosa pirâmide invertida, a teoria do lead clássico, que ensina a começar pelas perguntas básicas sobre o fato (o que, quando, onde e por que), respondendo-as como num formulário no qual o mais importante vem primeiro, seguindo-se do menos relevante ou menos urgente, em direção à informação mais dispensável, que vai ao final do texto. Este modelo serve, entre outras coisas, para a informação mais rápida do leitor. Mas também tem a finalidade de facilitar a edição. Afinal, se houver falta de espaço, o editor saberá que pode começar a cortar o texto de baixo para cima, deixando as informações mais urgentes concentradas mais no início.
Utilizemos uma notícia como exemplo:
Empresário é executado com mais de
60 tiros de fuzil em Campo Grande
O empresário Geraldo Ramos Villa, 36, foi morto na noite de
ontem com mais de 60 tiros de fuzil na frente da esposa
e do cunhado em Campo Grande.
Atuante no ramo de produtos recicláveis, Geraldo chegava
em casa dirigindo seu carro, quando foi alvejado por bandidos
que o aguardavam nas proximidades do local.
O lead reúne as informações mais próximas ao fato escolhido e responde as perguntas: o que?, quando? onde? e por que?. Esta última pode ou não estar no lead. A escolha do fato é implícita e ao redor dele que se busca outras informações, também respondendo ao critério de importância e proximidade do fato até chegar à uma certa distância temporal do fato.
O modelo pressupõe uma repetição da apreensão mais natural. Sabemos de um acidente de trânsito primeiro a partir dos dados mais próximos ao acontecimento, só depois vindo saber de informações que o contextualizam e tornam mais particularizado e individualizado. Afinal, muitos acidentes podem ser idênticos em sua primeira impressão, sendo particularizados pelos seus contextos, possíveis causas etc.
Mas há outras formas de se interpretar os elementos da pirâmide invertida, de modo que o seu formato pode ser diferente e, portanto, produzir efeitos diversos. Segundo Adelmo Genro Filho, a marca do jornalismo é a singularidade. Isso quer dizer que o que é singular, inédito ou inesperado, é notícia. Mas nos parece óbvio que essa seleção é genérica e parte de categorias universais ou gerais reconhecíveis amplamente na sociedade, ou seja, não cabe aí toda a particularidade de um evento, personagem ou fato social, mas a sua singularidade perante o todo dos fatos. A particularidade, por sua vez, é o que torna o fato único, irrepetível. Um acidente de avião é singular, porque é inesperado e inédito diante da expectativa e da comoção, rompimento daquilo que se entende por normalidade. Mas acidentes aéreos ocorrem e ocorreram aos montes na história, assim como podem ocorrer dezenas em um curto espaço de tempo. Assim são os fatos singulares da vida social, diferente da singularidade individual, que demanda uma maior particularização.
Diferente da sua singularidade, que pode ter elementos repetíveis e encontrados em outros acontecimentos semelhantes, a particularidade encontrada mais ao final do relato é irrepetível e torna único o evento. Isso significa que a realidade mais concreta, mais universal, está no final da matéria e não no início. O topo da pirâmide invertida é, portanto, o lugar do fato geral, esquemático, amostra recortada do fato concreto, embora saibamos que todo o relato jornalístico tem essa característica limitada e abstrativa em relação à realidade. Mas enquanto o topo da pirâmide é a parte mais próxima temporalmente, é a mais distante em sentido concreto. Epistemologicamente, o topo alargado da pirâmide representa a proximidade e, portanto, importância relevante do fato. Assim, o modelo nos comunica e nos convence de que os aspectos mais gerais, mais esquematicamente abstratos e artificiais são a realidade que importa. Eis o problema do modelo. Como resolver?
Deve-se saber que é no fim da matéria, na contextualização e particularização, que se encontra a razão, ou as razões, para a escolha do fato singular, do topo da pirâmide. Isso quer dizer que para o jornalista que deseja estabelecer novos critérios é o fim e o contexto particular que resolve esse problema, concedendo novas formas de relato, título e lead.
Singularidade e particularidade
O que é singular é notícia. Mas singular significa o rompimento de uma linha de “normalidade”, ou trivialidade, do cotidiano da vida social. É evidente que o conceito ou entendimento sobre normalidade ou trivialidade está implícito e, para ser bem recebida, uma notícia deve conectar-se com a percepção mais usual e social sobre essa “normalidade”. Mas também é possível, e comum, que essa normalidade seja induzida justamente por estar nas entrelinhas e pela expectativa de alinhamento entre sociedade e os jornais. As pessoas já esperam que o jornal irá descrever e escolher os fatos conforme o entendimento mais trivial de normalidade.
A escolha do fato se dá, portanto, a partir de uma visão específica que é explicada, quase sempre de modo sutil, na contextualização.
Voltemos ao exemplo utilizado:
Título: Empresário é executado com mais de 60 tiros de fuzil em Campo Grande
O fato exposto no título é a singularidade resumida de maneira esquemática, obedecendo a ordem da pirâmide invertida. A singularidade carece de particularidade, sendo o fato um esquema genérico. Muitos empresários podem ter sido executados em Campo Grande, com mais de 60 tiros.
Lead: O empresário Geraldo Ramos Villa, 36, foi morto na noite de ontem com mais de 60 tiros de fuzil na frente da esposa e do cunhado em Campo Grande.
O lead apenas expande o título, dando mais detalhes e particularizando um pouco mais, mas ainda assim mantém o fato jornalístico como um objeto geral e repetível.
Contextualização: Atuante no ramo de produtos recicláveis, Geraldo chegava em casa dirigindo seu carro, quando foi alvejado por bandidos que o aguardavam nas proximidades do local.
Este é primeiro parágrafo após o lead e caminha na direção da particularização ao acrescentar fatos. O restante da matéria (que pode ser lida neste link) dá outros detalhes da vida da vítima, o que vai, de certa forma, explicando e justificando a eleição do evento como fato jornalístico noticiável. O fato de ser um empresário atuante justifica a noticiabilidade e particulariza conforme são acrescidos detalhes de sua vida, tornando, portanto, um relato único e destacando o fato de outros milhares de fatos semelhantes.
Adelmo Genro Filho sugere, portanto, uma pirâmide não invertida, um triângulo equilátero (figura abaixo), onde o vértice superior (x) representa a singularidade, o fato destacado como mais próximo e por isso o símbolo maior de relevância e do acontecimento em si mesmo. A pirâmide vai descendo, assim, do mais singular e geral para o mais particular e único, isto é, a base fática que sustenta o relato e o torna irrepetível (y).
Tanto o ápice da singularidade quanto o da particularidade possuem, porém, uma base de pressupostos que os antecede (no caso de x) e os impulsiona (y). A escolha do fato tópico da manchete, portanto, provém de um conjunto de pressupostos que mesclam realidade e ideologias, enquanto o final do texto, a contextualização, responde à mesma projeção combinada da construção de critérios que orientarão novas notícias, com novas singularidades.
Ainda assim, sabemos, todo relato é geral e busca o universal, que é alcançado não pela sua síntese de singularidade social, mas pela particularização. O singular é o estereótipo mais geral recebido mais facilmente pela mente popular e social, enquanto a particularização constrói e delineia a complexa trama do real em direção a uma maior consonância com uma narrativa. Ao contrário do que parece, portanto, não é a manchete ou o lead que apresenta a narrativa ideológica, mas a sua contextualização posterior, que particulariza e insere o fato geral em um contexto específico.