Amarás o teu próximo e poderás odiar o teu inimigo.
Tal é a premissa da cômoda instrução, rechaçada por Jesus, ao refletir sobre o hipócrita comportamento dos fariseus, que atribuíam a si mesmos, orgulhosamente, todo o bem e toda a virtude, convencidos de que somente a prática integral e cega da lei, em extremos rigores puristas e positivistas, era-lhes suficiente para justificar toda conduta.
Ao denunciar o erro e o engano contido naquela fórmula, revelando, em um raciocínio aparentemente simples, que ela não passava de um jogo semântico vazio e sem significado real, Jesus sintetizou o problema, questionando: “se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis?”
Jesus, ao assim proceder, desmascara o perigoso jogo das construções puramente verbais, algumas cheias de floreios e que, embora teoricamente muito bem intencionadas e dirigidas ao bem, não passam de ecos vazios que nada expressam ou representam no mundo real.
Ou seja, dizer que se deve amar os amigos equivale, no mundo empírico, ao mesmo que não dizer coisa alguma. Por óbvio, o amor é próprio da condição de ser “amigo”, e sem ele não seria este o nome correto do que se está tentando definir. Os fariseus agarravam-se a fórmulas e preceitos vazios para reafirmarem sua superioridade e sua exclusividade na posse de todos os méritos. Chegavam a agradecer a Deus, em seu íntimo, por não serem como os outros homens: ladrões, injustos e adúlteros, nem como o publicano que ali estava, quieto, orando e chorando suas muitas falhas. [1]
Detentores exclusivos de toda integridade. E assim autoproclamados.
Este tipo de jogo semântico, repleto de palavras vazias, está mais presente em nosso cotidiano do que poderíamos acreditar, se prestássemos mais atenção. Ainda nestes dias, ao passar na frente de um restaurante, de comida vegana, deparei-me com uma placa que dizia:
Não entre se apresentar sintomas de Covid, sexismo, racismo ou fascismo.
Quanta nobreza! Basta afixar uma placa com tal conteúdo autopromocional, na porta de seu restaurante, para que o restante da humanidade logo presuma, ou tenha certeza absoluta, que ali está um homem decente. Como é fácil ser bom!
Também nunca se viu, em todas as milhares e cansativas edições dos reality shows televisivos, dos quais só participam seres humanos de altíssima envergadura moral, algum concorrente que não fosse enlouquecidamente sincero, autêntico e “ele mesmo”. Doa a quem doer.
Os exemplos dados servem apenas para ilustrar um problema dos mais graves, mas também muito ignorado: o da demolição da linguagem, cujo efeito mais perceptível é a completa dissociação entre os termos do idioma e o seu real significado, transformando, assim, quase tudo que se diz e lê em mero palavrório estéril. Este fenômeno se faz cada vez mais indisfarçavelmente crítico.
O grande filósofo Eric Voegelin, citado, neste particular, por Rodrigo Gurgel, definiu o problema, há muito, como simulacro da linguagem: parece linguagem, mas como não guarda a correta relação com a realidade, não correspondendo, no mundo real, ao que julga exprimir, trata-se de mero arremedo ou cópia grotesca daquilo que a linguagem realmente diz. Trata-se do sequestro da linguagem pelas ideologias, quaisquer que sejam elas.[2]
O mesmo problema ocorre com a utilização indiscriminada de jargões intelectuais monopolizados por certos grupos e repetidos à exaustão pela mídia, banalizando conceitos e definições ao sabor de discursos interesseiros. Sorrateiramente, a mentira se faz crível – pois expressada por uma linguagem que parece expressar o verdadeiro.
A mais recente vítima dessa distorção, gerada, sobretudo, pela repetição de chavões e palavras dissociadas de seu significado real, foi o jornalista Rodrigo Constantino, atacado pelos ferozes defensores do bem e da virtude. Em uma de suas “lives”, ele trouxe à reflexão o perigo que há na banalização do conceito de estupro. Por diversas vezes, ele reiterou o quão hediondo e odioso é este crime, mas ponderou que, em havendo o consentimento, ainda que em estado de consciência alterada por álcool ou drogas, não se pode falar em estupro. E ele tem razão.
Minutos depois, a comoção foi geral. Acusaram-no de fazer “apologia ao estupro”, foi vítima de “cancelamento” e perdeu diversos contratos com meios de comunicação. Os próprios colegas jornalistas colaram-lhe a pecha de apologista do estupro, no que foram ecoados por ninguém mais, ninguém menos, que a erudita, multisciente e literata Anita.
Reflitamos sobre o nível do absurdo: dizer que um jornalista sério, ainda por cima pai de uma moça, faz apologia do estupro? Quando, na verdade, o que ele fazia era justamente o contrário, tentando evitar que um crime tão grave, nefasto e repugnante, seja banalizado e tenha seu conceito indevidamente alargado para abarcar situações em que a pessoa consentiu com o ato, ainda que possa, posteriormente ter-se arrependido?
E o que é apologia? É incentivo, elogio, defesa, justificação ou louvor. Apologia do estupro. Existe alguém que, em sã consciência, seja capaz de fazer isso? Ou estamos diante de uma expressão completamente vazia e viciada, apartada por completo de sua real significação? De um desvio semântico intencionalmente dirigido para agredir e difamar?
A linguagem utilizada não traduz nada de real, apenas acorrenta os que nela acreditam a um nível profundo de alienação.
Infelizmente, a raiz destas duras investidas contra a linguagem, no intuito velado, mas mal disfarçado, de demoli-la, está, sem que nos apercebamos, nos materiais didáticos utilizados nas maiores redes de escolas do país, inclusive nas de confissão católica.
Não faltam exemplos do sorrateiro intento da destruição do idioma, da linguagem e de todas as suas formas de construção cultas. Em vez de serem estudados poemas de Manuel Bandeira, Fernando Pessoa ou Adélia Prado, são dissecadas letras de raps do Rapper Emicida e de Gabriel, “o pensador”. Fosse pouco, as incautas crianças ainda recebem como “tarefa” o que se lê abaixo (prepare-se o leitor):
Que tal contar sua relação com a escrita por meio de um rap também? Você pode fazer isso parodiando o rap de Gabriel ou outro que você conheça. Escolha o rap que você vai utilizar como base. Escute-o muitas vezes para memorizar a batida.
Não basta destruir a língua e a norma culta. É preciso, também, destroçar o senso estético musical das crianças, habituando-as a “batidas”; sua autoestima, sugerindo que parodiem em vez de criar; hipnotizá-las com a repetição dirigida a memorizar tão linda melodia.
Páginas à frente, prossegue a apostila de “Língua Portuguesa” no deliberado múnus de demolir o idioma e, com ele, a literatura e a cultura, apresentando os chamados “ciberpoemas”, que são os “poemas” feitos na internet, geralmente em vídeo, utilizando muitos recursos gráficos e visuais – mas nenhum recurso linguístico, gramático ou literário. Temos, ainda, os não menos excêntricos “poemas visuais”, de que são belíssimos exemplos (prepare-se, novamente, o leitor, para altas doses de emoção):
E, de Arnaldo Antunes, o tocante “Cromossomos”:
E ainda não acabou! Outra altíssima expressão do manejo cuidadoso da linguagem como arte está nos modernos e profundos “minicontos”. Vejamos um exemplo:
Espaços Escolares, de Elaina Cristina Araújo de Maria
O Parquinho e a Biblioteca flertaram-se.
O êxtase em livros queria brincar.
Resultado: gozou-se no balanço vocabular.
É isso, caro leitor. Riamos, para não chorarmos.
Talvez seja difícil de acreditar, mas todos os exemplos acima são reais, e foram retirados de apostilas de Língua Portuguesa, de escolas de redes conceituadas e de mensalidades bastante caras.
O fato de existir uma ideologia alimentando os profissionais das editoras de materiais didáticos é tão lamentável quanto indisfarçável.
Que saudades tudo isso me faz sentir de Dona Milca, professora de Português da minha quinta série, em escola pública, no interior do interior de Minas, sindicalista roxa, mas que ali se mantinha firme na obrigação de não permitir que tirássemos o lápis do papel do início ao fim da grafia da palavra “desproporcionalmente”, só permitindo que pingássemos o “I” e cortássemos o “T” ao terminar de desenhar o último “E”. Sim, desenhar. Sua ideologia jamais se fez mais importante do que a missão de ensinar e a devoção ao idioma.
Não que a língua seja um fim em si mesma, mas também não precisa ser, travestindo-se de um modernismo vazio, o fim de si mesma. E o que é ainda pior: divorciá-la, definitivamente, de seu objetivo de meio de transmissão do pensamento, condenando-a a valer não pelo que efetivamente representa, mas por falsos significados a ela indevidamente acoplados.
Para Eric Voegelin, resgatar a linguagem significa recuperar o objeto a ser por ela expresso, libertando-a das amarras ideológicas que a destroem, já que, uma vez tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela[3].
É preciso que estejamos atentos para perceber a chamada “Segunda Realidade”, que Robert Musil, citado por Olavo de Carvalho[4], define como uma espécie de mundo paralelo feito inteiramente de significados dicionarizados e sem nenhum fato ou coisa dentro. Se removida para a Segunda Realidade, a mente humana já não serve como instrumento de orientação na realidade genuína, mas conserva apenas duas funções essenciais: o engano e o autoengano.
Palavras não bastam por si, por mais poderosas que sejam. Associá-las a ideias e a discursos, autopromoção e autoafirmação, ainda mais quando apartadas de seu sentido real, é um equívoco cada vez mais comum não apenas nas conversas cotidianas, mas também, e talvez principalmente, nos escritos que pretendem nos informar. As palavras não podem, aliás, como todo o resto, prescindir da realidade que está por trás de toda ação e de toda intenção.
Se as palavras não são mais capazes de expressar a realidade e de nos levar a ela, o estado de alienação e hipnose de toda a sociedade terá se tornado sua condição normal. E já está ocorrendo.
[1] Cf. Lucas, 18, 11.
[2] Sobre o tema, aulas do professor Rodrigo Gurgel disponíveis em https://www.youtube.com/watch?v=YWJDz68vLLQ e em https://www.youtube.com/watch?v=NZIbOSCKGpk
[3] Voegelin, Eric. Reflexões Autobiográficas. São Paulo: É Realizações, 2007, p. 82.
[4] Carvalho, Olavo de. Um discurso. In Diário do Comércio, 25/09/2015.