Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
(Fernando Pessoa)
Apenas um véio lôco. Lôco o bastante para ser sincero.
(Olavo de Carvalho)
…
Entrei no vagão ainda vazio no Jabaquara e me sentei de frente para o homem. O sujeito devia ter uns quarenta, era grande, calvo e equilibrava na cara imberbe um par de óculos de gente inteligente. Demais, tinha uma bengala simpática onde de tempos em tempos, em sinal de reflexão, pousava as mãos e o queixo. Tudo coisa de gente inteligente. Sem contar que o homem estava de paletó com sarja creme e sapato de couro marrom, uniforme preferido do homem bem formado, do gentleman moderno, do pequeno burguês cult com quem topamos em cada esquina do Centro, nos botecos da Paulista, no happy hour, e nas salas de concerto que tocam as novidades da música contemporânea. Era, sem sombra de dúvidas, um sujeito inteligente.
Não obstante o que me chamou a atenção foi menos sua roupa que sua franqueza. Jamais vira um sujeito conversar tão abertamente no metro – e olha que passo por lá todos os dias. Não que do meu banco desse para ouvir o conteúdo daquele discurso apaixonado, mas seus gestos, a forma como ele concordava e discordava usando o poder das expressões, ora dizendo sim, ora não, só com o maneio de cabeça, como dizia toda uma frase com o simples franzir das sobrancelhas, como torcia e endireitava a boca para meditar, como apertava e arregalava os olhos com quem procurou e achou uma ideia num beco escondido da memória, como repousava na bengala para ouvir seu oponente, como voltava a falar de maneira sincera, crua, ora emburrando, ora dando risinhos, ora sugerindo malícia, ora comedindo e ficando bravo, gesticulando com a mão livre. O homem era um Cícero. E ele falava mesmo, doa a quem doer. Dane-se. Pelo menos era isso que sua cara denotava. O homem era sincero, palavra. Conversava como quem estivesse com o coração nas mãos, sem vergonha de nada, tudo na lata. Seus trejeitos não mentiam. Tratava-se de um homem sábio e desprendido, um amante da verdade, alguém da daria para interlocutor de Sócrates. Uma figura. Foi o rosto mais sincero e a conversa mais franca que jamais vira no metrô de São Paulo.
O único detalhe é que, bem, o homem falava, por assim dizer, completamente sozinho. Calhou, pois, que, por puro azar, o homem mais sincero da história do metrô de São Paulo fosse louco de pedra.